Descongelamento de Carreiras e Sustentabilidade Orçamental

21 nov 2017

 

A abordagem que o Governo tem adotado a propósito do descongelamento das carreiras na Administração Pública é bem paradigmática das contradições e do cinismo político da maioria que governa o País.

A primeira peça cínica emerge logo com o anúncio do descongelamento. Já vi referida na comunicação social a ideia de que o avanço do descongelamento de carreiras na função pública tem sido apresentado pelo Governo como uma sua vitória e a última das grandes reversões de medidas de austeridade do anterior Executivo liderado pelo PSD. Já se percebe por que razão refiro peça cínica: é que a medida que determinou o congelamento das carreiras foi tomada pelo Partido Socialista, no tempo do Governo chefiado por José Sócrates. Tal como em muitos outros domínios, o Partido Socialista quer também aqui apagar a responsabilidade pelas decisões que tomou quando as finanças públicas deixaram de permitir veleidades populistas, neste caso a decisão que então tomou de congelar as valorizações remuneratórias e as progressões de carreiras. E vale-se, para este efeito, do facto de elas terem permanecido congeladas durante o período em que chefiei o Governo para fazer crer aos cidadãos que nada teve que ver com a situação criada, antes dando a entender que ela foi herdada do Governo que o antecedeu. Mas a verdade é que o congelamento já vinha de trás e continuou nestes dois anos, com o apoio do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e do Partido Ecologista Os Verdes.

Por outro lado, o Partido Socialista anunciou que o descongelamento ocorreria a partir de 2018, mas acrescentou que os efeitos completos, em termos de progressões efetivas associadas, poderiam ter de produzir-se ao longo de mais de um ano. Quer dizer, sugeriu que o impacto financeiro da decisão poderia obrigar a um certo desfasamento na produção de efeitos na progressão de carreiras. Deste modo, deixou criar a dúvida na opinião pública daquilo que o descongelamento poderia exatamente significar. De facto, ao considerar que o processo poderia ter de desenvolver-se em mais do que um ano, os socialistas alimentaram potenciais equívocos e falsas expectativas quanto ao descongelamento de carreiras. Se, como menciona agora o Primeiro Ministro, se tratava apenas de pôr “o cronómetro a contar”, a medida entrava em vigor em 2018 e os seus efeitos seriam imediatos e não se percebe por que razão haveria de carecer este processo de um desenvolvimento por período mais alargado. A verdade, no entanto, é outra: o Partido Socialista quis alimentar o equívoco de como o tempo de congelamento das progressões seria contado para futuro, apenas para não ter de clarificar que foi o próprio Governo socialista em 2010 que determinou no Orçamento do Estado que esse tempo não contaria para futuro, quando as progressões fossem retomadas!

Aqui chegados, vale a pena ser preciso nesta matéria: no OE de 2011, o Governo de então do Partido Socialista deixou claro (nº 9 do artigo 24ª da Lei do Orçamento) que «o tempo de serviço prestado (…) não é contado para efeitos de promoção e progressão, em todas as carreiras, cargos e, ou, categorias, incluindo as integradas em corpos especiais, bem como para efeitos de mudanças de posição remuneratória ou categoria nos casos em que estas dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito».

Esta norma orçamental está em vigor desde o tempo do Governo socialista em 2011 e perdura até este ano, por transposição assumida pelo atual Governo e com o apoio do BE, do PCP e do PEV. Ou seja, o PS em 2010, quando propôs a norma orçamental ao Parlamento, tal como em 2016 e 2017, não quis que esse tempo decorrido durante o congelamento contasse para futuro, mas nunca o quis assumir com transparência apenas para que não se percebesse que a norma era da sua própria autoria.

Naturalmente, não está em causa que o PS mude de opinião e possa agora propor que, afinal, esse tempo passe a contar, se bem que não se perceba ainda até que ponto contará. Percebe-se que o Governo o faz, no entanto, por pressão dos sindicatos e dos seus parceiros no Parlamento. Porém, parece evidente que, a ser assim, o tempo que se reporte ao período de congelamento tem de contar para todas as carreiras e não apenas para algumas, especiais ou não. E isso, independentemente da bondade da medida, terá de ser sujeito a um juízo de comportabilidade orçamental. E eis que parece, de repente, que o Governo e o PS parecem estar preocupados com isso. Grande contradição, pois.

Até aqui os socialistas e a geringonça não se preocuparam nada em andar a utilizar toda a margem orçamental propiciada pelo ciclo económico mais favorável para distribuir em nova despesa permanente, conquanto isso lhes permitisse dizer que fecharam a austeridade do anterior Governo e que conseguiram conciliar milagrosamente nova despesa com o crescimento económico sem agravar o défice. Deste modo, não se preocupam nada em que, nestes dois anos, a recuperação de rendimentos possa ter ocorrido a uma velocidade maior à custa do desinvestimento no ensino básico (em 2016 quase menos 66% do que em 2015), na saúde (menos 29% no mesmo período) ou na ciência e ensino superior (menos 48%) e da desqualificação destas políticas públicas, entre muitas outras, vítimas das elevadas cativações sem precedente.

Nem se importam que o défice estrutural não cumpra as exigências europeias ou que o rácio da dívida se mantenha tão perigosamente elevado, expondo o País a perigos e vulnerabilidades maiores do que seria admissível. Soa, por isso, a oportunismo a declaração hoje de António Costa que não resisto a citar: «se queremos investir mais na qualidade da educação, na qualidade do sistema de saúde e nos serviços públicos não podemos consumir todos os recursos disponíveis com quem trabalha no Estado». Que grande verdade, não fosse esta afirmação representar exatamente o contrário do que tem sido a sua prática à frente deste Governo.

Para terminar, importa deixar claro que realmente o Governo tem tratado esta matéria do descongelamento de carreiras com a maior demagogia e populismo. Agora que parece estar aberto a rever, a pretexto das negociações com os sindicatos dos professores, a contagem de tempo para efeitos de progressões de carreira importa também que faça, por uma vez, uma discussão séria. Mas é incapaz de assumir a realidade objetiva: esta não é uma questão de estar a favor ou contra as pretensões dos professores. Esta é uma questão de toda a Administração Pública, incluindo todas as carreiras especiais.

Não se pode (não se deve) confinar a discussão a uma carreira em particular. Não se podia, dizia o ministro da Saúde, sustentar um gasto adicional de 46 milhões de euros para assegurar as pretensões dos enfermeiros, mas talvez se possa suportar uma parte dos 650 milhões de euros que custaria, segundo cálculos do Governo, a contagem de tempo nas carreiras dos professores. Eis o que dá transformar, como o tem feito repetidamente o Partido Socialista, o exercício de governo num “mercado político” (expressão é de Norberto Bobbio) em que cada grupo social é transformado num potencial cliente a quem o Governo oferece alguma coisa e em que cada grupo se pode rever ou identificar como potencial beneficiário, dependendo da sua relevância eleitoral relativa e independentemente das considerações sobre o interesse geral ou o destino comum dos Portugueses como um todo.

Pergunta-se agora: e quanto custará a medida alargada, como seria coerente, a toda a Administração Pública, quer em termos de despesa permanente em salários quer futuramente em pensões? O Governo está disponível para nos apresentar os cálculos? E ainda para arbitrar a sua comportabilidade orçamental? Ou não precisa de nos dar qualquer satisfação, por acreditar que lá acabará por encontrar uma saída negociada para a situação junto dos parceiros que escolheu para governar? Como dizia António Costa, agora aqui o jornalista, propôs há algum tempo o Primeiro Ministro que as decisões futuras sobre grandes investimentos públicos pudessem ser alcançadas na Assembleia da República por uma maioria qualificada de 2/3. Mas quando se trata de potenciais “clientes políticos” cuja negociação possa implicar milhares de milhões de euros em despesa permanente e défice estrutural, o Governo parece ser novamente autossuficiente no seio da sua geringonça. Os esporádicos apelos à responsabilidade do PSD feitos por deputados do PS não passam de pura hipocrisia.

Já era tempo de o Governo assumir as suas próprias responsabilidades e deixar de lado a imoralidade política que consistiria em encontrar uma solução agora para que fossem os próximos governos e os Portugueses a pagar no futuro.

 

Pedro Passos Coelho

Presidente do PSD